OBRAS
CASTELOS DE AREIA
O título da série Castelos de Areia sugere a simbologia de um clima de nostalgia, uma promessa de felicidade singela, ao mesmo tempo em que nos remete ao temor do desconhecido, do que pode desfazer-se a qualquer momento.
O trabalho de Katia Canton como artista visual produz esse efeito. Resultado de anos de intensa atuação interdisciplinar e pesquisas acadêmicas trazidas para sua expressão autoral – ora de forma lírica e ora com certa ironia crítica –, dialoga com o desejo humano de encantamento e mistério. Lida com a contradição entre a beleza das histórias dos contos de fadas e as asperezas do desconhecido, do lado escuro, do medo. O termo “castelo de areia” pode aparecer nos lugares mais inesperados. Trazendo-o para o cotidiano, remete às brincadeiras de crianças na praia, mas também refere-se às ilusões, que são construídas sem alicerces firmes, e tendem a se desmanchar, como os castelos de areia desmancham nas águas do mar. Essa série traz grandes e delicadas pinturas, de um cotidiano bucólico, repleto de casas e árvores, desvelando, por sua vez, algo novo, quando são maculadas por uma grande mancha escorrendo pela imagem pronta. Então traduzem uma impressão de suspensão, de desmanche e de silêncio.
Para além dos castelos de areia, o conjunto apresentado se expande com séries correlatas que fazem parte do repertório da artista. Acasos é uma série de desenhos e pinturas, ainda mais onírica, onde a artista deixa a imaginação voar. Revela ainda as tensões do humano, mas com ternura e fantasia, reavivando-nos a capacidade de imaginar. Sonho e realidade parecem coexistir em harmonia. As cores mais suaves ou monocromáticas acolhem e fazem as formas falarem. Nelas a artista explora suas fantasias de forma lúdica, por meio de figuras soltas e complementos. Deixa emergir de seus dedos manchas que aos poucos conquistam formas. Então tomam vida, se abrem, se inventam e se subdividem. Essas obras são feitas para serem descobertas, uma de cada vez, num detalhe, numa figura. Desfruta-se nessa ação, da liberdade do olhar.
Os desenhos da série Contos de Fadas parecem sínteses de histórias contadas, do tempo que se atravessou e da distância que se percorreu para chegar até elas. Resgatam a infância longínqua na qual os indivíduos continuam se segurando, como que querendo capturá-la e mantê-la para um futuro incerto. As obras nos remetem à observação da passagem do tempo, da transformação. Estão ligadas à fertilidade, reprodução e morte. Sempre parecem insinuadas e são convites para uma jornada de mistério.
A artista dá novo significado a histórias consagradas para falar de discriminação, intolerância, opressão.Algumas obras falam de ausência. Outras, ao mesmo tempo em que sugerem presenças e memórias, falam também de solidão e distanciamento. Por vezes, despertam sentimentos de melancolia, às vezes prazer, outras, temor. Katia Canton caminha aqui sobre a singeleza das formas, escondendo a aspereza da realidade, mas incluindo o comentário crítico sobre os diferentes aspectos do que nos define como seres humanos.
Nessa série a artista parece discutir o conceito de gênero, mas fala muito mais de poder. São obras onde os homens parecem ser o sexo poderoso, mas são de fato o gênero silencioso, pois quem fala é sempre a mulher. Cada obra dessa série é uma pequena narrativa em aberto. No papel são colocados os personagens. Sobre suas faces encurvadas estão cenas que relatam episódios inteiros, esticados, encolhidos, invertidos. São como fantasmas dormentes na nossa memória. Todos os desenhos dessa série apresentam-se ao primeiro olhar doces e românticos, mas deixam um gosto amargo ao final.
As pinturas da série Profundezas do Bosque nascem de palavras e homenagens literárias. Frases escritas pela artista na tela são depois veladas pela tinta e tornam-se marcas impalpáveis que desaparecem pouco a pouco. Na exaltação da cor, as frases conduzem-na para a reflexão, ordenam e acalmam, antes que entrelacem camadas e mais camadas de tinta em sucessão na tela.
As palavras e sentimentos ficam ocultos para sempre por camadas protetoras de tinta. O resultado é a própria imagem da lembrança, viva, lacunar, cavada de ausências, habitada por uma antiga e conhecida pulsação. Assim, nas pinturas, o trabalho vem aos nossos olhos por suas próprias imperfeições, pelos sucessivos caminhos que atravessam e pelas lembranças que disso restaram. Katia faz uma pintura nostálgica, mas ao mesmo tempo fortemente incrustada no agora, com uma presença que a faz dotada de potência própria. Na superposição de cores fortes, parece revelar a movimentação das atitudes e dos gestos. A obra mostra uma vontade incontida de dar-se, uma sede imanente de fruição da vida.
Desde 2009, a artista conduz um work in progress da série de fotografias Contos de Fadas da Vida Real. Elas transitam entre o sagrado e o profano, registrando imagens mundanas, criadas nos limites da fantasia, do desejo de pureza e da transgressão que caracterizam o humano em cada um de nós.
A série A Cura Pelas Histórias, pintada com medicamentos – iodo, rifocina e violeta genciana – faz com que os tons obtidos sejam profundos e dramáticos. Katia desenha as figuras e as tinge de ocre e as atravessa de ardores vermelhos e violetas, as impregna de dor e de urgência.
Olhamos enfim os trabalhos que a artista cria com diferentes materiais. Observamos de novo e então algo acontece. Somos transportados ao passado, a memórias de outros, com suas infinitas nuances e suas outras histórias, feitas de imagens sublimes, estranhas, sutis.
Adriana Rede
Curadora independente