OBRAS

CURA

Apesar de ter crescido ouvindo contos de fadas, eu havia me esquecido do poder que eles possuem de dar forma a um determinado modo de compreender o mundo até minha filha de dez anos ter recebido a tarefa de criar seu próprio conto de fadas na aula de inglês. Lendo seu conto, com um toque contemporâneo, mas ainda assim mantendo a estrutura dos contos de fadas tradicionais, lembrei-me de Walter Benjamin e de sua ideia de que o conto de fadas é o nosso primeiro professor, no sentido de nos mostrar modos de comportamento, de relacionamento com os outros e de como devemos ou não confiar em determinadas pessoas em situações da vida cotidiana.

Jeitos de nos portar no mundo e de nos relacionar com outras pessoas não são universais ou neutros, mas sim construídos a partir de nossas experiências de classe social, raça, religião, etnia, gênero e sexualidade. A impressionante produção de obras de Katia Canton em vários meios e suportes, do desenho à pintura, passando pela fotografia e instalação, seduz o espectador fazendo-o pensar naquilo que a artista chama de “conto de fadas de cada vida” – sua própria história, sua construção social, sua fantasias e desejos e os sentidos que elas têm no tempo.

Apesar de Benjamin referir-se ao primeiro contador de histórias como aquele que narra, os pintores das cavernas criaram também narrativas e podem ser vistos como contadores de histórias. A obra de Katia Canton, baseada em histórias, poemas e contos de fadas dá continuidade às qualidades alegóricas presentes nos primeiros contadores de histórias, ainda que a partir do ponto de vista da contemporaneidade. Tomando emprestadas suas palavras, “meu trabalho articula a potência da arte enquanto contadora de histórias para produzir experiências humanas mágicas e transcendentes”.

O papel de um ator teatral, como sugere Jacques Rancière, é o de um contador de históras que cria uma comunidade emancipada de artistas-contadores juntamente com seu público.

Artistas, como pesquisadores, constroem um palco onde manifestação e efeito de sua competência tornam-se dúbios à medida em que criam uma nova aventura num novo idioma. O efeito de um idioma não pode ser previsto. Ele convoca os espectadores, que se tornam intérpretes ativos, que fazem sua própria tradução e se apropriam das histórias para si mesmos, criando ao final um conto próprio. Uma comunidade emancipada é na verdade feita de contadores de histórias e de seus tradutores.”

Como uma contadora de histórias habilidosa, Katia Canton cria a instalação Rapunzel, que me remete ao que Jacques Rancière chama de comunidade emancipada. Ali, pregadas a uma árvore, estão várias perucas, com fios de tamanhos diversos, tingidos em diferentes cores. A obra me afeta como espectadora e me perturba, fazendo-me pensar na história de linchamentos nos Estados Unidos. Essa minha alusão é baseada na minha própria história, como uma pessoa de pele escura, vivendo num país onde desde a escravidão perdura uma consistente brutalidade contra os afro-americanos. Forjando uma comunidade através de suas obras de arte, Katia Canton está acessando histórias de privilégio e de opressão que ainda povoam nosso mundo local e globalmente.

Como aprendo com Katia, os contos de fadas que lemos para as crianças ou a que assistimos nos desenhos animados da Disney emergiram num momento particular da história. Os mesmos contos, como Chapeuzinho Vermelho ou Rapunzel, falavam de uma história bem diferente no passado, uma história mais brutal, opressiva, misógina. Criando a partir de seus interesses de infância e dos muitos anos que dedica à pesquisa da história dos contos de fadas, sua série Contos de Fadas: Personagens deixa visíveis a tensão entre o trauma e a magia nos contos de fadas. Instantaneamente reconhecemos os personagens dos contos que são retratados em fortes pinceladas, enunciando a opressão de gênero ao mesmo tempo em que celebra a força do feminino.

Cavocando minhas memórias sobre os contos de fadas ocidentais como símbolos de romance, beleza e aventura, me vejo aprendendo novas lições que me permitem imaginar um mundo novo, onde dignidade humana, equanimidade e paz se tornem presentes. Isso tudo pode soar como um conto de fadas, se considerarmos a realidade que nos rodeia hoje, plena de desigualdades e guerras constantes; mas o que as obras de arte de Katia nos mostram é a necessidade de contarmos novas histórias, que precisam ainda ser inventadas.

Dipti Desai

Associate Professor and Director of the Graduate Art + Education Programs of Steinhardt School, NYU