OBRAS
ONTEM
Era necessário chegar mais perto, entrar em relação e criar uma escuta para a invenção. Cenas da vida permanentemente em movimento, a presença de certas histórias, marcas na subjetividade, a criação de espaço para o silêncio e para uma certa solidão acolheram algo que se aprontava há tempo.
Ontem se ocupa do lugar da memória, tanto aquele da infância da artista, povoada pelos contos de fadas, quanto da própria narrativa dessas histórias, ancestrais na origem, e que foram adquirindo camadas de diferentes versões, à medida da passagem do tempo. O que interessa nessas produções? Seus fluxos, seus embates e enfrentamentos, seus convites, suas feituras, sua coragem, seus adentramentos.
As séries de Katia Canton mostram interesses surgidos desde muito cedo na vida da artista e perpetuam campos de criação que prosseguem e se fazem presentes. A vontade de fazer desenhos, pinturas e fotografias a faz retomar uma trajetória com itinerários contundentes e críticos. As obras enunciam uma força sensível e atualizam a sua singular experiência do feminino pelo viés de diferentes sensações, mobilizadas por imagens produzidas em experiências de qualidades paradoxais: fantasiosas, delicadas, esgarçadas, devastadas, prazerosas, ilusoriamente persistentes, provocantes. Todas essas configurações estão presentes numa contemporaneidade controversa e abrem um debate acerca deste tema.
Experiências do feminino contemporâneo se mesclam com memórias e, em suas variações, ressoam nas pinturas, desenhos, fotografias, objetos, instalações, narrativas poéticas.
As produções definem lugares e, numa extensão, se comunicam com a forma masculina, provocando-a, qualificando emoções, apontando fragilidades e violências. Feminino e masculino, disposições tratadas como matérias sensíveis e contemporâneas, são revestidas ora com humor e graça, ora com gravidade.
Imagens são paradoxais: nuvens de fantasia, sonhos e realidades, lucidez e sensações revisitadas a partir do tempo passado encarnam a atual materialização. É no exercício das semelhanças e das diferenciações que um convite aqui se faz. Trata-se de descobrir, nas formas apresentadas por Katia, como acessar as forças eróticas, aquelas que nos ligam à vida, que nos curam, que acendem o desejo de viver, de prosseguir e de intensificar esse viver.
Eliane Dias de Castro
Pesquisadora, profª. doutora do Depto. de Terapia Ocupacional da FMUSP e curadora independente